117
Juliana Bueno Mota*
*E-mail: jugeo@ymail.com
aB s t r aC t
e purpose of this article is to show the current situation
in which indigenous people live in Brazil . Also, brings
to discussion the current situation in which inhabit the
Guarani Kaiowa in the state of Mato Grosso do Sul and
their demands vindicatory to demarcate their ancestral
territories with the society and the Brazilian state. e
methodology used was constructed from the analysis of
data from IBGE and mainly through participant obser-
vation and interviews, in relation to the struggles of the
Guarani and Kaiowa people.
Keywords:
Indigenous Population Census 2010; Re-ethnicization,
Guarani and Kaiowa; Return territories-tekoha
resuM e n
El propósito de este artículo es mostrar la situación actual
en la que los pueblos indígenas viven en Brasil . También,
trae al debate la condición en la que habitan los Guara
Kaiowa en el estado de Mato Grosso do Sul y sus deman-
das reivindicatorias de demarcar sus territorios ancestra-
les con la sociedad y el Estado brasileño. La metodología
utilizada fue construida a partir del análisis de los datos
del IBGE, y principalmente a través de la observación
participante y las entrevistas, en relación con las luchas
del pueblo Guaraní y Kaiowá.
Palabras claves:
Censo de Población Indígena 2010, Re-etnización, guara-
ní y kaiowá, Reanudar territórios-tekoha
Os povos indígenas do Brasil: Situação atual dos
Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul
e indigenous people of Brazil: Current Situation of
Kaiowa Guarani and Mato Grosso do Sul
FaCultad de CieNCias HumaNas / presideNte prudeNte -
brasil
uNiVersidad estatal paulista
Recibido: julio 12 de 2013 | Revisado: agosto 15 de 2013 | Aceptado: octubre 18 de 2013
| Cátedra Villarreal | lima, perú | V. 1 | N. 2 | 117 - 128 | julio - diCiembre | 2013 | issN 2310-4767
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os poVos iNdígeNas do brasil: situação atual dos guaraNi e Kaiowa em mato grosso do sul
| Cátedra Villarreal | V. 1 | No. 2 | julio-diCiembre | 2013 |
Territorialização da população indígena
brasileira
“No Brasil todo mundo é índio,
exceto quem não é.
Eduardo Viveiros de Castro
O último censo elaborado pelo Instituto
Brasileiro de Geograa e Estatística (IBGE)
- Censo Demográco Indígena 2010 -, de-
monstrou que o Brasil é um país multicul-
tural. Foi contabilizado o total de 305 etnias,
falantes de 274 línguas e dialetos distintos,
territorializados em 80% do território na-
cional (IBGE, 2012). Também, por meio dos
censos do IBGE nos períodos de 1991; 2000;
2010 temos visto um aumento signicativo
da população indígena brasileira. Esse pro-
cesso crescente demonstra o caráter de resis-
tência desses povos aos novos modos de viver
e ser indígena na sociedade contemporânea
e, também, contraria a ideia historicamen-
te produzida de que os povos indígenas es-
tão em vias de extinção, tendo colaborado
para a desconstrução de que a condição de
ser indígena é transitória, como propunha as
políticas indígenas anteriores a Constituição
Federativa do Brasil de 1988.
Para entender esse contexto, é importante
dizer que foi diverso as práticas fomentadas
pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e FU-
NAI (Fundação Nacional do Índio), tais como:
impor modos de vida da sociedade ocidental
não indígena aos indígenas, novos padrões de
organização socioterritorial não condizente
com a organização tradicional destes povos,
como é caso de impor o compartilhamento
territorial; a imposição da língua portuguesa
em detrimento da língua nativa; outras formas
de manejo da terra que culminaram no des-
matamento das reservas; limitar o modo em
que os indígenas operacionalizavam a criação
e recriação da cultura material e imaterial, en-
tre outros.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Cas-
tro (2006, p.43) salienta que nesse processo
de transguração do indígena “A Constituição
de 1988 interrompeu juridicamente (ideolo-
gicamente) um projeto secular de desindia-
nização, ao reconhecer que ele não se tinha
completado. Porém, o indígena continua sen-
do estigmatizado na sociedade nacional bra-
sileira como uma condição transitória e não
autentica.
Nas palavras da antropóloga Lucia Helena
Rangel (2012) “Uma hora ele é índio demais
e atrapalha, outra hora ele é índio de menos, e
não têm direitos. A condição de ser indígena e
o que garante seus direitos sobre seus territórios
podem ser esclarecida da seguinte forma: “Tem
que ser selado, registrado, carimbado, avaliado,
rotulado se quiser voar! Se quiser voar....
Nesse aspecto, Viveiros de Castro (2006)
ao se referir ao que é ser indígena e quem é
indígena perante o Estado brasileiro diante
de seu arcabouço de direitos jurídico-legal,
considera que “O que não é carimbado pelos
ociais competentes não existe – não existe
porque foi produzido fora das normas e pa-
drões – não recebe selo de qualidade [pois], é
preciso administrar a nação; é preciso gerir a
população, e o território [...]”. (p.44)
O censo do IBGE pela primeira vez em
sua história considerou em 2010 a auto iden-
tificações dos sujeitos para definir o que é
índio e o que não é da mesma forma como
ocorre com brancos, negros... Os dados não
demostram que o Estado não quer obter
controle sobre o processo de indianização
ou desindianização, mas, fundamentalmen-
te, revelam a não concretização do projeto
civilizatório do Estado. O aumento signifi-
cativo das ações afirmativas acende a re-et-
nização (expressão de Eduardo Viveiros de
Castro) indígena na sociedade brasileira.
E, sobretudo, demonstra que a condição do
indígena na sociedade atual brasileira “[...]
não é uma questão de cocar de pena, uru-
cum e arco e flecha, algo de aparente e evi-
dente nesse sentido estereotipificante, mas
sim uma questão de ‘estado de espírito. Um
modo de ser e não um modo de aparecer
(Castro, 2006, p.42).
119
Segundo o IBGE (2012), a população brasi-
leira corresponde a 190.755.799 e, desse total,
817.963 indivíduos se autodeclaram indíge-
nas, que incide na sua participação em 80%
dos estados e municípios brasileiros. Dessa
população, 36.2% vivem em área urbana e
63.8% na área rural. Nesse caso, é importante
esclarecer que a população rural se refere, em
Figura 1
Regionalização dos Povos Indígenas do Brasil
Figura 2
População indígena
A população indígena não representa 1% da
sociedade nacional, mas demonstra uma im-
portante mudança na auto identicação do
povo brasileiro. Ou seja, o Brasil é mais indí-
gena do que se imaginava e que nas palavras
Fonte: Censo Demográco Indígena 2010 (IBGE, 2012).
Figura 3
Crescimento da população indígena no Brasil
Os dados ainda apontam outras informações
relevantes sobre essa população no Brasil. As-
sim sendo, o Amazonas aparece como o esta-
do de maior população indígena, aproximada-
juliaNa bueNo mota
| Cátedra Villarreal | V. 1 | No. 2 | julio - diCiembre | 2013 |
sua maioria, a população indígena que vive em
reservas e/ou Terras Indígenas.
Com a nalidade de vislumbrarmos a te-
rritorialização dos povos indígenas em terri-
tório nacional, trazemos por meio da Figuras
1 e 2 abaixo, a população indígena brasileira
por regiões.
de Viveiros de Castro (2006) “No Brasil todo
mundo é índio. Exceto quem não é.
120 | Cátedra Villarreal | V. 1 | No. 2 | julio-diCiembre | 2013 |
Fonte: IBGE (2012)
Figura 4
Estados brasileiros com maior população indígena
Fonte: IBGE (2012)
Figura 5
Porcentagem dos 10 estados com maior população indígena
Fonte: IBGE (2012)
Tabla 1
Estados brasileiros com maior população indígena
os poVos iNdígeNas do brasil: situação atual dos guaraNi e Kaiowa em mato grosso do sul
mente 168.680 indivíduos, sendo a maioria da
etnia Tikúna e/ou Ticuna, que contabilizam
46.065 indivíduos. Em segundo lugar, está o
Mato Grosso do Sul com 73.295 indígenas.
121
Situação dos povos indígenas no estado de
Mato Grosso do Sul
Ao considerarmos os dados referentes ao
Censo Demográco Indígena 2010, trazemos
para a discussão a importância do estado de
Mato Grosso do Sul diante do crescimento da
população indígena. Neste debate, cabe então
o aprofundamento sobre os povos indígenas
desse estado, que correspondem às etnias
Guarani, Kaiowa, Terena, Kinikinawa, Kam-
ba, Ofaié, Guató, Kadiwéu e Atikum, segundo
aponta os dados de Silva (2003) e Instituto So-
cioambiental (2013).
Estes povos indígenas encontram-se terri-
torializados em fundos de fazendas, em acam-
pamentos de Reforma Agrária, “acampamen-
tos” de retomadas (os mesmos se constituem
em quantos territórios transitórios), “acam-
pamentos” “permanentes” e nas periferias da
cidade (Pereira, 2006; 2007; Barbosa da Silva,
2007; Mota, 2011).
Figura 6
Crescimento da população indígena em Mato Grosso do Sul
Fonte: IBGE (2012)
Segundo o IBGE (2012) a população indí-
gena nesse estado, referente ao total de 73.295,
é de 58.838 indivíduos em Terras Indígenas e
14.457 fora de Terras Indígenas. Isso signica
que 80.2% estão territorializados em reservas
e/ou Terras Indígenas demarcadas pelo Esta-
do brasileiro. Deste total, 43.401 são Guarani
Kaiowá e representam 59.2% da população
indígena, ou seja, os mesmos tem a maior
população indígena sul-mato-grossense e,
ainda, a segunda maior população indígena
brasileira.
Também, segundo o censo, a maior po-
pulação indígena se encontram nos muni-
cípios de Amambaí, Dourados, Miranda,
Campo Grande, Aquidauana, Itaporã, Pa-
ranhos, Caara, Japorã e Tacuru. Amam-
baí é o município com maior população
com 7.225 indivíduos. Todavia, os muni-
cípios de Dourados e Itaporã concentram
juntos a maior população indígena desse
estado, correspondendo a uma população
de 6.830 em Dourados e 5.095 em Itaporã,
e contabilizam o total de 11.925 indivíduos.
Esta população está concentrada, em sua
maioria, na Reserva Indígena de Dourados
(RID) e Terra Indígena (TI) Panambizinho
(ver localização destas Terras Indígenas em
Figura 1).
juliaNa bueNo mota
| Cátedra Villarreal | V. 1 | No. 2 | julio - diCiembre | 2013 |
122
Tabla 2
Municípios com maior população indígena em Mato Grosso do Sul
Fonte: IBGE (2012); ISA (2013)
Figura 7
Municípios com maior população indígena em Mato Grosso do Sul
Fonte: IBGE (2012)
Ainda, segundo o censo, a população da RID é
11.138 indivíduos (para uma extensão territorial
de 3.475) e, desse total, 10.720 autodeclaram-se
indígenas e 418 não se declaram indígenas e, a TI
Panambizinho conta com uma população de 306
indivíduos. Referente a RID, a mesma está loca-
lizada entre os municípios de Dourados e Itaporã
com uma extensão territorial de 3.475 hectares.
Estes dados revelam que a maioria da po-
pulação indígena desses municípios está na
RID, com uma estimativa de 93.4%. Isso sig-
nica que 7.6% estão fora da reserva, sendo
que 3.5% estão territorializados na TI Panam-
bizinho e os 4.6% estão vivendo em outras
modalidades de territorialização, entre elas, os
acampamentos” de retomadas.
Figura 8:
Territorialização Indígena no município de Dourados e Itapo
Fonte: IBGE (2012)
os poVos iNdígeNas do brasil: situação atual dos guaraNi e Kaiowa em mato grosso do sul
| Cátedra Villarreal | V. 1 | No. 2 | julio-diCiembre | 2013 |
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No tocante ao termo outras modalidades
de territorialização cabem aqui uma ressalva
sobre o seu entendimento conceitual que é dis-
cutida pelo antropólogo Levi Marques Pereira
(2007, p. 01), ao dizer que “[...] essas modali-
dades são de desenvolvimento recente, sendo
possível deni-las como respostas adaptativas
das populações Kaiowa [e Guarani] às profun-
das transformações históricas e econômicas
por que passou Mato Grosso do Sul.
Além disso, é importante considerar que o
termo outras modalidades de territorialização
representam os indígenas que resistiram a
condição de reserva e não conseguiram reto-
mar seus territórios e, como já considerado
nesse trabalho, os mesmos atualmente encon-
tram-se territorializados nas cidades, fundos
de fazendas na condição de trabalhadores
rurais, em “acampamentos” de retomadas,
acampamentos permanentes” e acampamen-
tos de Reforma Agrária.
Povos Guarani e Kaiowa: denominação
etimológica, onde e como vivem
No que se refere aos povos guarani é im-
portante esclarecer que os mesmos são falantes
da língua guarani, pertencente ao tronco-lin-
guístico tupi-guarani com variações dialetais
entre eles. Estes povos estão divididos em três
subgrupos, sendo eles: o Guarani Ñandeva,
Guarani Kaiowa e Guarani Mby’a.
Os mesmos se encontram territorializa-
dos em vários estados brasileiros: Paraná, Rio
Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio
de Janeiro, Tocantins, Espirito Santo, Pará e
Mato Grosso do Sul. Já em outros países latino
americanos, eles estão na Argentina, Bolívia e
Paraguai.
No Brasil estes povos se autodenominam
e/ou são conhecidos de diversas maneiras:
• Guarani Ñandeva: Ava-Guarani, Xiripa e
Tupi-Guarani;
• Guarani Kaiowa: Kaiowa, Pai-Tavyterã e
Tembekuára;
• Guarani Mbyá: Guarani, Mbya, M’byá.
E, também, em países da América Latina re-
cebem outras variações etimológicas.
• Bolívia: Guarayos, Chiriguanos e Izoze-
ños;
• Paraguai: Mbya, Ñandeva, Ava-Chiripa,
Paï-Tavyterã (Kaiowa), Ache (Guayaki*),
Guarani-Ñandeva (Tapieté*);
• Argentina: Mbya (ISA, 2013).
É importante elencar que a etimologia dos
povos Guarani contempla uma variedade de
nomes que devem ser entendidos a partir da
história de contato desses povos com a socie-
dade colonial e com outras etnias que trans-
formaram e interferiram no reconhecimento e
auto reconhecimento dos povos guarani.
A diversidade etimológica dos povos gua-
rani em Mato Grosso do Sul abarca tanto os
Guarani Kaiowa e os Guarani Ñandeva. O pri-
meiro identica-se como Kaiowa e o segundo
como Guarani. No segundo caso, essa especi-
cidade da denominação etimológica ocorre
somente nesse estado.
O ka’a (o mato) guarani e kaiowa: retomadas
de território-tekoha
A problemática do território é central na existência
atual dos índios e se reete não apenas nas suas mo-
bilizações político-reivindicatórias, mas também ocupa
uma posição central na denição dos padrões de sua
organização social e nas suas manifestações identitárias
e culturais...
João Pacheco de Oliveira (1999, p.108)
Tekoha signica na língua guarani o lugar
onde é possível reproduzir o modo de ser gua-
rani e kaiowa. O prexo teko pode ser entendi-
do enquanto costumes e tradições, enquanto
o suxo ha expresso o sentido de lugar. As-
sim, pode-se dizer que tekoha é o lugar onde é
possível a reprodução do modo de vida destes
povos, de modo que é necessário considerar
que sem teko não há tekoha, mas também, que
sem tekoha não há teko (Pereira, 2004; Mota,
2011). Isso signica que sem os territórios
tradicionalmente ocupados a reprodução da
cultura é inviabilizada. E, neste aspecto, reto-
mar tekoha é a possibilidade de reconstituição
juliaNa bueNo mota
| Cátedra Villarreal | V. 1 | No. 2 | julio - diCiembre | 2013 |
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de um modo de vida similar aos preceitos de
seus ancestrais.
Neste contexto, nossa compreensão de
tekoha considera o modo de vida guarani e
kaiowa entendendo-o a partir de uma lingua-
gem geográca de território em uma pers-
pectiva integradora e multidimensional, que
compõem os aspectos materiais e imateriais
para a reprodução de um modo de ser e es-
tar no mundo, que nas palavras de Haesbaert
(2005, p. 6776).
Todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoria-
mente, em diferentes combinações, funcional e
simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço
tanto para realizar “funções” quanto para produzir
signicados. O território é funcional a começar
pelo território como recurso, seja como proteção ou
abrigo (“lar” para o nosso repouso), seja como fonte
de “recursos naturais” – “matérias-primas” que va-
riam em importância de acordo com o(s) modelo(s)
de sociedade(s) vigente(s)” (como é o caso do pe-
tróleo no atual modelo energético capitalista).
A importância de viver no tekoha para os
povos Guarani e Kaiowa é ilustrativo na narra-
tiva do kaiowa xamã Jorge (2009) ao dizer que
tekoha é o corpo do índio, sem ele a gente não
vive. A partir desta narrativa é possível vis-
lumbrarmos a problemática do território no
tocante a atual situação em que vivem diante
da necessidade de demarcação dos territórios
indígenas pelo Estado brasileiro.
O kaiowa Jorge também ressalta a impor-
tância da terra para os Guarani e Kaiowa ad-
vertindo que, mais do que terra, as lutas pelo
retorno aos tekoha estão intrinsecamente re-
lacionadas à multidimensionalidade dos ho-
mens e mulheres com as riquezas naturais,
tais como os cursos dágua, a fauna, a ora e,
juntamente a estes, a territorialidade construí-
da com o mundo sobrenatural. Neste sentido,
podemos dizer que as lutas pelo retorno aos
tekoha se dão na busca pelo teko porã (o modo
correto e bom de ser e viver guarani e kaiowa),
fundamentalmente por ser este, como aponta
Melià (2008, p. 103), “[...] es ‘lo que está bien
[...] um quadro de virtudes, ante todo sociais,
pero que reagem também lós comportamen-
tos individuais [...]”.
A luta por território é um movimento polí-
tico-ideológico apropriado pelos movimentos
sociais indígenas e não indígenas que signica,
substancialmente, a luta pelo território. Nesta
perspectiva, no que concerne à busca pelo teko
po, este se dá pela realização totalizadora do
território que tem maior representatividade
na vida Guarani e Kaiowa em seus referenciais
materiais-simbólicos com mato-terra do que
em referência a terra-solo.
A relação com a terra tornou-se um impor-
tante meio de luta pelo território, integra as
narrativas guarani e kaiowa diante de suas rein-
vindicações pela demarcação de seus territórios
ancestrais perante a sociedade e o Estado brasi-
leiro. Todavia é elucidativo que a relação com o
mato – ka’a na língua guarani -, integra todas
as dimensões sobre o que é ser guarani e kaiowa
sobre a ótica destes povos. Aqui está um aspec-
to importantíssimo sobre o modo de vida des-
tes povos, diante do signicado do mato para a
reprodução de seu modo de vida nos preceitos
do teko porã. O mato pode ser entendido como
a multidimensionalidade da natureza, todos os
aspectos que envolvem a relação destes povos
com os diversos seres naturais-humanos que
habitam o mato, segundo as narrativas guarani
e kaiowa. Como demonstra Jorge, “o kaiowa é
mato, vive do mato”, demonstrando que as re-
lações entre estes povos e a natureza não estão
dissociadas, mas, sim, se fazem imbricadas na
indissociação gente-natureza. O que esta re-
lação implica é que em grande medida a repre-
sentatividade do mato demonstra a amplitude
multidimensional do território, já que conside-
ramos que sem o mato, as relações com a terra
e com as águas cam prejudicadas, impossibili-
tando os Guarani e Kaiowa de reproduzir e vi-
venciar o teko porã.
Neste aspecto, podemos dizer que o mato
tem uma representatividade muitíssimo im-
portante para a reprodução do modo de vida
guarani e kaiowa, pois...
os poVos iNdígeNas do brasil: situação atual dos guaraNi e Kaiowa em mato grosso do sul
| Cátedra Villarreal | V. 1 | No. 2 | julio-diCiembre | 2013 |
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[...] a oresta [mato] com seus campos naturais
era “tudo o que contava, era tudo o que conhe-
ciam do mundo, era o seu mundo. Domesticar
a oresta com seus perigos era a oportunidade
que tinham os homens para desenvolver sua
personalidade e para obter prestígio. A comuni-
cação vital com os animais e com os espíritos da
oresta permitia-lhes desenvolver sua rica vida
espiritual. Tudo isto está irremediavelmente
perdido, pois com a perda da oresta, também
se perdeu, quase ao mesmo tempo, os saberes a
ela relacionados e a prática da convivência vital
com as plantas e os animais (Grünberg, 2011, p.
02).
O mato é a possibilidade de viver bem
- teko porã -, onde se encontra a terra boa e
farta, onde estão os deuses no qual devem pe-
dir permissão para caçar, coletar, plantar... É
a partir da representação do mato que se tem
a representatividade da territorialidade destes
povos que permite acessarem os rios, os córre-
gos, de construírem tekoha.
A necessidade em retornar aos tekoha, nas
palavras do kaiowa ñanderu Jorge, “retomar
nosso tekoha, se dá pela incessante luta pelo
sonho em reviver as relações socioterritoriais
do tekoyma (modo de vida dos antigos). Nes-
te contexto, as disputas territoriais se dão na
congruência das disputas pelo território, sen-
do que a terra é uma de suas dimensões. Por
isso, a luta pelo retorno se faz na perspectiva
da totalidade do território, ou seja, pela apro-
priação material e simbólica que permite a
sobrevivência físico-biológica e cultural das
gentes em sua multidimensionalidade.
Nesta perspectiva, Souza (2003, p.60) apon-
ta as dicotomias de sentido entre terra-pro-
priedade, numa perspectiva eurocêntrica, o
que nos permite dizer que a expressão tekoha
enquanto representatividade de continuação
do modo de ser e viver guarani e kaiowa, po-
dendo ser vislumbrada no signicado da pa-
lavra nativa ka’agua – aquele que venho do
mato. Em suas palavras: “[...] a concepção
eurocêntrica de “terras indígenas, sujeitas ao
direito de propriedade, e as concepções indí-
genas de “território” que designam um espaço
coletivo pertencente a um povo [sociedade],
aos que hoje o integram e aos seus antepassa-
dos [...]”.
A busca pelo retorno aos tekoha é uma
luta pelo retorno aos espaços de caça, de pes-
ca, de coleta, de moradia, de agricultura e de
todas as relações cosmológicas que permite a
ligação dos Guarani e Kaiowa com o mato. A
legitimidade das lutas indígenas por seus te-
rritórios ancestrais são conquistas por garan-
tias de direitos perante a sociedade e o Estado
Nacional brasileiro, principalmente a partir da
Constituição Federativa do Brasil de 1988, no
parágrafo I do seu artigo 231, que:
São terras tradicionalmente ocupadas pelos ín-
dios as por eles habitadas em caráter permanen-
te, as utilizadas para suas atividades produtivas,
as imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários ao seu bem-estar e as
necessárias a sua preservação física e cultural,
segundo seus usos, costumes e tradições.
Neste contexto, pode-se dizer que com a
constituinte de 1988 a garantia de direitos, a
então não reconhecidos aos índios, passaram
a ser considerados. “Saindo de cena, ao me-
nos no âmbito do discurso político, modelos
de sociedades indígenas futuristas, na pers-
pectiva da integração e assimilação destes po-
vos à sociedade nacional, com a nalidade de
transformá-los em não índios, trabalhadores
rurais e cristãos (Lima, 1995).
Os movimentos de armação étnica to-
mam conta das conjunturas sociais, até en-
tão estabelecidas, visando garantir a estas
sociedades diferenciadas o direito e o recon-
hecimento de serem diferentes, na medida
em que esta diferença implica garantias de
direitos especícos, assim como o reconheci-
mento das multiplicidades de “histórias-tra-
jetórias” que estão sendo construídas no es-
paço-tempo.
Por tanto, como é elucidativo pelo antro-
pólogo Paul E. Little (2002, p. 02; 04).
juliaNa bueNo mota
| Cátedra Villarreal | V. 1 | No. 2 | julio - diCiembre | 2013 |
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[...] a questão fundiária no Brasil vai além do tema
de redistribuição de terras e se torna uma pro-
blemática centrada nos processos de ocupação
e armação territorial [de identidade territorial
e, consequentemente, o signicado da expressão
terra diante da diversidade étnico-cultural], os
quais remetem, dentro do marco legal do Estado,
às políticas de ordenamento e reconhecimento
territorial [...]. Outro aspecto fundamental da
territorialidade humana é que ela tem uma mul-
tiplicidade de expressões, o que produz um leque
muito amplo de tipos de territórios, cada um com
suas particularidades socioculturais. Assim, a
análise antropológica da territorialidade também
precisa de abordagens etnográcas para entender
as formas especícas dessa diversidade de territó-
rios.
Considerações nais
O Brasil está passando por um processo de
re-etnização que deve ser entendido a partir
da conquista de direitos dos povos indígenas
perante o Estado brasileiro no tocante a de-
marcação de seus territórios e o reconheci-
mento étnico-cultural a partir da Constituição
Federativa do Brasil de 1988. Se anteriormente
a constituinte os povos indígenas eram consi-
derados uma condição transitória, já que os
mesmos seriam integrados a sociedade na-
cional como não indígena após este período
tem vislumbrado um movimento importante
de identicação e armação étnica da socie-
dade brasileira enquanto indígenas. A partir
os poVos iNdígeNas do brasil: situação atual dos guaraNi e Kaiowa em mato grosso do sul
| Cátedra Villarreal | V. 1 | No. 2 | julio-diCiembre | 2013 |
dos dados que discutimos neste artigo, refe-
rente ao Censo Demográco Indígena 2010
(IBGE, 2012), entendemos que é importante
uma análise mais cuidadosa deste movimento
de re-etnização. Neste artigo, nosso objetivo
é contribuir para a necessidade de reexão e
reavaliação deste processo que tem complexi-
cado o entendimento sobre os povos indíge-
nas do passado e do presente.
É importante elucidar que este movimento
é permeado por um conjunto de simbolismos
com o modo de vida dos antepassados nos
territórios tradicionalmente ocupados, e que
os mesmos têm possibilitado explicações so-
bre quem são e o porquê estão no mundo. Os
laços com o passado se fazem presentes nestas
representações, fundamentalmente, porque é
pelo passado que há, também, a garantia de
futuro, tendo em vista que é o passado que le-
gitima a luta destes povos. Em muitas narra-
tivas, retomar os territórios tradicionalmente
ocupados é a necessidade da recomposição
das áreas de mata, da diversidade de animais
e vegetais, em suma, a multidimensionalidade
do território que permite o fazer-se Guarani e
Kaiowa. Diante disso é notório que a reivin-
dicação de territórios por estes povos se faz
construindo espaços de esperança, em alusão
ao livro de David Harvey, pois, como elenca
Oscar Wilde, citado neste livro, “um mapa
do mundo que não inclua Utopia não mere-
ce nem mesmo uma espiada” (Harvey, 2004,
p.181 – grifo nosso).
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Referências
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